Archive for 2015

Inconstância


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Há muitas nuvens e é possível acompanhar o movimento de todas elas. O contraste é latente num céu tão escuro quanto a caneta que escrevo. A música que ouço não é capaz de vencer o ruído dos autos, tampouco o cigarro aceso supre a angústia de um prédio se erguendo frente a minha janela. É, eu não fumo. Certa vez um amigo disse que o caos está dentro de nós. Parei de medir o tempo, em verdade não sei quantas folhas de calendário se passaram desde a nossa última cerveja. Em verdade não sei qual foi a última mesa de bar em que não falei sobre faculdade e trabalho. Habituei-me a reclamar da ausência de queridos, mas sou incapaz de me fazer presente. Tenho me tornado tão passageira quanto aqueles que o coração guarda nas reminiscentes efemérides. Tenho dificuldade em me desapegar de vínculos. Contraditória a mim mesma, tenho dificuldades em manter vínculos. Embora não sem dor. Há muito tempo não consigo concluir qualquer reflexão que me proponho a escrever. Tenho vivido as 4 estações do ano em um dia. Calculo 6 horas de sono e comemoro quando cumpro 4. As estações se repetem nos dias que correm e eu não sei como lidar com as corriqueiras oscilações. Preciso encontrar tempo pra dançar. Sem a necessidade da embriaguez. E de uma samambaia na janela.

12/2015

Ser.


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Então... embora não condene, detesto livros de autoajuda e me incomodo bastante com a romantização da dor. Chega! Sejamos práticos e objetivos: a vida cobra, o sistema é uma desgraça, sequestra a criatividade das crianças e sufoca as ideias dos adultos. Como se não bastasse, por vezes somos nós mesmos a própria personificação da covardia. Assistimos inertes o relógio enrugar nossos planos. Inclusive aqueles mais simples, de acabar com a fome da África Subsaariana, emancipar as mulheres do Congo, derrubar a influência econômica estadunidense, salvar o mundo de nós mesmos. E ir viver no campo aos 50 anos, com uma ONG de reciclagem, dois filhos adotados, em uma comunidade autossustentável. Bobeira. Mas cê sabe, por mais que soframos das tantas doenças do mundo contemporâneo, a gente adora passar rasteira no tempo pra ser feliz. E, em um sistema que produz pessoas frustradas e encapsuladas em rotina e calendário, ser feliz é revolucionário! É a coisa mais subversiva que podemos intentar contra a ordem estabelecida no caos. E cê sabe, é claro que sabe, ainda que das inconstâncias, ainda que a gente esqueça, mas o que a gente mais sabe, é ser feliz!

11/09/2015


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Esse amálgama de tantas personalidades que nos compõem, performaticamente, nos cria, recria e transforma, numa constante, a constante de todos os dias... por vezes somos os estranhos de nós mesmos, desacostumados com nossa própria pluralidade, inúmeras são as faces, fases e facetas que bailam em nós. Desacostumados estamos com nossa própria existência! Tenho uma fome de mundo que bole em mim, que me consome, que me come por dentro... O visível e o recôndito, o sutil e o extravagante, o sério e o risível, anseios, projetos, ideias de vida que pulsam, me rasgam, clamam por acontecer, gritando de dor o ritmo do relógio. A barricada incessante do tempo, cronometrado, imbuído nos fazeres sequenciais da rotina. Essa, que mede em horas as rotações que se afunilam e nos anulam. Os meus personagens estão cansados de dormitar na coxia e as minhas ansiedades engavetadas quase faz falar o criado-mudo!

Prá me transbordar de mim. Quase não caber mais...

Do indiferente


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Do que eram seus dias, nada sei, mas as noites frias o traziam de volta ao mesmo lugar. Ele e um outro, que também era ele. Como quem pega uma criança pelo punho e a carrega junto ao criado-mudo pra dormir. Mas não se tratava de uma criança, tampouco a noite se fazia fraterna. Nem com ele, nem com esse outro, que também era ele.

A aparência envelhecia exponencialmente, pele rachada das chibatadas do tempo e do vento de outonos outros e de outros invernos tantos que quase lhe congelaram as entranhas. Aqueles, nos quais embebíamo-nos de chocolate-quente, soterrados em vestes e mantas bordadas em tecidos pesados.

A cada rotação, um dia a menos (ou a mais, se assim lhe soa melhor), a cada fim de noite, um colchão um tantinho mais estreito, um tantinho mais mofado... E sempre, e tanto mais, inerente à paisagem. Feito extensão da calçada e da vida. Mas ainda ali, enraizado à espera do dono.  Dele e daquele um outro, que também era ele. Passa dia, passa noite, enfileiram-se semanas, meses e anos, foi primavera, desembarcou verão, mas no outono último, no último ninguém retornou. Traiçoeira noite, não o recolhera de volta.

O personagem do meu relato, conhecido meu não era. Protagonista da própria existência, coadjuvante incômodo de todas as outras. Percebido por alguém que me contou o que lhe contaram, do caso que conto agora. Um alguém que se crava na paisagem contabilizando os tantos tantos “não alguéns”. Sem rosto, sem nome, sem endereço. Mas com um colchão!

Na semana seguinte à desventura daquele nunca bem aventurado, lá estava o colchão reocupado. Um cachorro que gania, lamentando ausência... daquele que também era ele.

07/05/2015

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Hoje conheci um rosto! O rosto de um vizinho! Mas não era um vizinho qualquer... era um vizinho cujos pés eu já conhecia. E não era só os pés... dele, conhecia também sua cama e seu cobertor. Sim, os pés, a cama e o cobertor! Sem engano, os meus pés também eram conhecidos seus mas, acima dos tornozelos, não sei até onde os olhos daquele sujeito foram capazes de percorrer nos dias sempre corridos. Com o perdão das repetições, o que conto é mesmo isto, crê! Nos encontrávamos os dias todos, subsequentes, mas nada além dos pés um do outro conhecíamos. Hoje, veja bem, hoje descobri o rosto que aqueles pés carregavam! Sim, estavam lá, sem engano: uma boca cerrada, um nariz estampado no meio da cara, um par de sobrancelhas e enormes olhos arregalados. E eu vi essa composição in-tei-ra! Eu, com meu nariz estampado no meio da cara, meu par de sobrancelhas e a curiosidade pregada na retina dos olhos que se arregalaram... Fui descoberta! E fui descoberta por aquela criatura que se aninhava en/coberta. “-Tia, me paga um lanche?”
30/04/2015


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...e cá, me desvestindo de meias vestes. Dos não acontecimentos, do morno e do raso, dos meus desacontecimentos. Êta coração que quer! Êta sangue quente em maratona! Como desvestir se a roupa ainda serve e o novo não apraz?! Libriana, chata! Enxerga-te tu mesma, assim, como nas descrições que te são ofertadas sem encomenda! Enxerga-te quente, viva, lá e cá, bonita, mulher, grande, agarra o mundo sem te apegar a ele, agarra como sempre fez com o desapego que nunca soube ter! Sê assim, tal qual descrições que há pouco te fizeram debruçar em reflexões: crueldade na doçura. Doce? Sim, sê sempre doce! Mas "crueldade" é palavra que não reside em ti! Não acredite, não adote! Como ousam te rotular assim?! Por respeitar tuas próprias vontades sem ceder aos caprichos de outrem?! Lembra-te: tantas vezes traiu a ti mesma... Respeita o teu querer, não te force a outros, não te condene por tuas negações à racionalidade, aceita-te! Olhe pra trás se quiser olhar e continue carregando contigo o que acredita que ainda possa te acompanhar. E sê linda, tão linda quanto te descrevem, tão linda quanto aqueles que não conhecem tuas fraquezas creem que tu seja! 

Descrição


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"Mulher do cabelo liso e nariz estreito em pele preta; do sorriso que brinca e das bochechas que apoiam os olhos amendoados; do par de panturrilhas que se desenham em pernas fortes, sobre os pés que ousam dançar o mundo, sob o abdômen rijo que sustenta seios fartos... Menina lenda 'Powhatan', guerreira de madeixas longas, fugida de clássico infantil; menina, pequena gigante das veias grossas, menina... (...)"


Escreveu-me.

E eu cá bailando na musicalidade bonita que carrega a descrição... Mas, diga-me tu: há nela, poesia ou estereótipo? Lê-me com olhos teus ou cria em mim personagens pros teus fetiches? Sujeito bonito de palavras macias, cujos textos, porém, não encontrarão os meus.


 04/2015

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Tanto espaço nos braços que guardam [e aguardam] o abraço, tantas meias palavras que desenham os meios diálogos, tanta coisa na carne, no travesseiro e na escrita... Quantos transbordares! Quantos! A vã fuga das vontades contidas, a vã busca de outros aconchegos, a vã racionalidade que mascara os apegos. Quantos pesares! Uma saudade que se fantasia mas não morre, a reminiscência do cheiro, das brincadeiras soltas, das cócegas... onde foi que deixamos nossos rastros? Onde foi que nos atropelamos e não voltamos pra juntar as partezinhas que caiam pelo caminho? Quantas permanências guardam o hoje! Tão mal percebida e zelada essa bagagem, que tanto guarda ela? Quantas respostas por acontecer! Comigo, trago tudo, as danças e andanças, as dores de cabeça, as madrugadas, os dias mal terminados, as noites em claro, os lugares desconhecidos... e um querer, que quero!

03/2015




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As pessoas já não são as mesmas, os lugares já não são os mesmos, as vontades e as prioridades também não. O tempo vai somando rugas à bagagem e nós vamos bailando suas intempéries, sendo cooptados pelas algemas de uma vida adulta ensandecida, que se deixa empoeirar ao passo que sabota os próprios anseios e imerge em impessoalismos. Uma capital pulsante, tão cheia de vida e tão carente de vitalidade. Gente meio gente, meio bicho, meio arquivo de metal. Um contraste que dói, que pesa, que clama. As linhas tênues entre o prazer e o padecer. Os textos de meias palavras;  e o pranto contido, tão sem tempo pra acontecer...

03/2015



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A mente cansada das vestes empoeiradas do mundo; exaurida da superficialidade das relações; dos companheirismos com prazos de validade; do esvaziamento do "ser"; a exaustão dos braços que tentam remar contra a maré; o cansaço diante das não adaptações às mequinharias humanas; da luta diária por não imergir na descrença politica; a linha tênue entre a vontade de lutar e a vontade de desistir; o cansaço dos escapismos; o cansaço em insistir manter laços; o cansaço das saudades; o cansaço da cidade; da militância; da falta de tempo e de paciência; o cansaço da TPM; o cansaço de ser mulher; o cansaço de estar cansada.

Karina Morais

03/2015


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Um dos pés caminhava nú. Apenas um dos pés. Olhares de reprovação. Certamente menos estranhamento despertaria se ambos descalços estivessem. Unhas sujas, calcanhares rachados, compondo um pé enorme de cutículas inchadas. O pé que calçado seguia, também nem ele todo no chinelo cabia. Fingiu não reparar nos cochichos daquela gente de patas vestidas. "Proxima estação: Sé. Desembarque pelo lado esquerdo do trem". O menino saltou do vagão. Enquanto não tivesse seu par de pisantes completo, seguramente do chinelo velho de numeração pequena não se livraria. Ainda era possível, acreditava, um dos pés proteger. De sua fisionomia, nada recordo. Um menino sem rosto, marcado pelo estigma do pé descalço.

Karina Morais
28.02.2015

Arquitetura do corpo


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Plantas, dedos, tornozelos, canelas, joelhos, coxas, virilhas, vagina, umbigo, abdômen, mamas, tórax, axilas, garganta, queixo, boca, buço, nariz, bochechas, olhos, sobrancelhas, testa, orelhas, nuca, ombros, braços, cotovelos, antebraços, mãos, dorso, lombar, quadril, nádegas, panturrilhas, calcanhares, plantas.

Dança.
Tudo move.

Ressaca


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Ao acordar, por horas procrastinou levantar da cama, evitando deparar-se consigo mesmo. Não queria recordar de seu protagonismo das noites anteriores. Sentia asco da própria transpiração, que exalava álcool barato, e do gosto amargo que ficara na saliva. Sentia-se feito personagem de Augusto dos Anjos. Teria permanecido o resto do dia ali, feito casulo, embriagada de ressaca moral por, mais uma vez, ter traído a si! Teria permanecido, não fosse a respiração oscilante, ofegante por ar. Não fosse a câimbra nas pernas e as mãos dormentes. Não fosse a claustrofobia que lhe sufocava em pesares. Não fosse o celular caído em qualquer lugar do quarto, notificando incessantemente que os companheiros das noites anteriores ainda existiam. E ainda lhe queriam. E queriam ainda mais. E ligam no dia seguinte! Quis lançar o celular pela janela. Quis dizer ao pobre rapaz que a noite foi um erro e que o cheiro dele que ficara na pele lhe revirava o estômago. Perfume diabético, minuciosamente escolhido pra agradar as presas. As presas. E agradava, mas grudava-lhe na mente feito vinheta política do horário comercial. Perturbardor. O pobre rapaz? Coitadinho... antes desprezível fosse! Desprezível era ela, que o culpara por não ter percebido suas faces de atriz. Ela sabotou a si mesma, forjando reciprocidade.

02/2015

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