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Afinidades ideológicas, um vinho pra margear as percepções, um vinil pra margear as vontades.

~ A respiração dele falava na mesma linguagem que a minha pele...~


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Sabe, eu tenho um blog. Eu nunca mostro, mas eu tenho um blog. Nele há meia dúzia de linhas em cada texto e meia dúzia de textos sem desfecho ou revisão. Tudo o que me proponho a escrever me é sempre tomado de assalto pelo sono. Nunca um rascunho deixou de ser rascunho e raramente releio o que escrevo. Evito esse tipo de encontro. Qualquer rabisco já nasce produto final e eu tenho me tornado perita em coisas inacabadas. Sobre o ontem, recordo mas não penso. Temo as doenças contemporâneas e não me permito morrer de nostalgia, reminiscências e amores. Sobre o amanhã, os pensamentos todos quase saltam pelo nariz. Pelo nariz, pela garganta, pelas cutículas, pelo diafragma... Faço logo uma planilha, cheia de cores e colunas, e abraço o mundo num Excel 2016. Pretendo viver mais uns 100 anos, preciso urgentemente me reconciliar com o tempo, me retratar com o sono e fazer do meu corpo um lugar habitável.

08/2016


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Cá pensando... propor-se ao exercício de autoconhecimento é como estar sempre às vésperas de nós mesmos. Ansiamos conhecer aquele que, no amanhã, já não se reconhecerá no momento agora. Todavia não me queixo, o hoje é sempre a véspera do sempre. Se pudéssemos, só um pouquinho mais, compreendermos as complexidades dos processos que nos encerram e nos recriam, aceitaríamos melhor a constância das inconstâncias.

05/04/2016

noite


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Um filme em praça pública, Sabotage. Um bar em um lugar comum. Companheirismo, feminismo, política. Mais do mesmo. Um pouco mais. Um brinde: bilhete com um nome e um número. Sorriso. Bilhete amassado para esquecer em um bolso qualquer. Cerveja. Caminhada. Cara, que lua linda. Caminhada. Casa. Cara, que lua! Décimo andar. Ops, errado. Escadas, chave. Chave? Porra... chave? Ufa, chave! Casa, meia luz. Um cigarro. Não, incenso. Agora um cigarro. Kumbayá. Cigarro entre os dedos de uma não fumante. Incensário. Um palo santo no incensário. Janela, aah... janela! E um CD de uma viagem recente. "No quería olvidar un detalle...". Música, janela, palo santo, kumbayá, lua. Vinho. Branco. Seco. Um vestido desabotoado pela metade. Lápis, caderno, meia luz e uma entrada do museu de Evita Peron. "Caminando por acá, tuve miedo...". Inspira... lua, janela, tosse. Rua: "curva perigosa, devagar". Janela, edifício, pontinhos de luz. Um prédio em contrução. Enooorme. Não estava alí quando saí. Prédio, construção, paisagem. O que havia antes dele? Paisagem. Um pedaço de céu que some. Expira... Janela, rua escura. Erma. Um menino que caminha. Um menino que caminha com um violão. Sorriso gratuito ao menino que não me vê. Última música, cinzas de um palo santo. Kumbayá, desenhos na fumaça, dedos que queimam. Cinzeiro. Vinho em uma taça errada. Um bilhete no lixo. Um bilhete, um nome e um número. Foda-se. Janela aberta. Aberta. Vinho. Nostalgia de um tempo recente. "Caminando por acá tuve tiempo de masticar los momentos". Casa. Casa que eu já não sei se é a minha. Janela. Ar. "El tiempo flota leve, como el peine te dibuja cuentos". Inspira... "Y solo brota el perfume de sintéticos frutales. Y los muros. Y miro el cielo... quiero partir."


31/03/2016

Inconstância


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Há muitas nuvens e é possível acompanhar o movimento de todas elas. O contraste é latente num céu tão escuro quanto a caneta que escrevo. A música que ouço não é capaz de vencer o ruído dos autos, tampouco o cigarro aceso supre a angústia de um prédio se erguendo frente a minha janela. É, eu não fumo. Certa vez um amigo disse que o caos está dentro de nós. Parei de medir o tempo, em verdade não sei quantas folhas de calendário se passaram desde a nossa última cerveja. Em verdade não sei qual foi a última mesa de bar em que não falei sobre faculdade e trabalho. Habituei-me a reclamar da ausência de queridos, mas sou incapaz de me fazer presente. Tenho me tornado tão passageira quanto aqueles que o coração guarda nas reminiscentes efemérides. Tenho dificuldade em me desapegar de vínculos. Contraditória a mim mesma, tenho dificuldades em manter vínculos. Embora não sem dor. Há muito tempo não consigo concluir qualquer reflexão que me proponho a escrever. Tenho vivido as 4 estações do ano em um dia. Calculo 6 horas de sono e comemoro quando cumpro 4. As estações se repetem nos dias que correm e eu não sei como lidar com as corriqueiras oscilações. Preciso encontrar tempo pra dançar. Sem a necessidade da embriaguez. E de uma samambaia na janela.

12/2015

Ser.


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Então... embora não condene, detesto livros de autoajuda e me incomodo bastante com a romantização da dor. Chega! Sejamos práticos e objetivos: a vida cobra, o sistema é uma desgraça, sequestra a criatividade das crianças e sufoca as ideias dos adultos. Como se não bastasse, por vezes somos nós mesmos a própria personificação da covardia. Assistimos inertes o relógio enrugar nossos planos. Inclusive aqueles mais simples, de acabar com a fome da África Subsaariana, emancipar as mulheres do Congo, derrubar a influência econômica estadunidense, salvar o mundo de nós mesmos. E ir viver no campo aos 50 anos, com uma ONG de reciclagem, dois filhos adotados, em uma comunidade autossustentável. Bobeira. Mas cê sabe, por mais que soframos das tantas doenças do mundo contemporâneo, a gente adora passar rasteira no tempo pra ser feliz. E, em um sistema que produz pessoas frustradas e encapsuladas em rotina e calendário, ser feliz é revolucionário! É a coisa mais subversiva que podemos intentar contra a ordem estabelecida no caos. E cê sabe, é claro que sabe, ainda que das inconstâncias, ainda que a gente esqueça, mas o que a gente mais sabe, é ser feliz!

11/09/2015


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Esse amálgama de tantas personalidades que nos compõem, performaticamente, nos cria, recria e transforma, numa constante, a constante de todos os dias... por vezes somos os estranhos de nós mesmos, desacostumados com nossa própria pluralidade, inúmeras são as faces, fases e facetas que bailam em nós. Desacostumados estamos com nossa própria existência! Tenho uma fome de mundo que bole em mim, que me consome, que me come por dentro... O visível e o recôndito, o sutil e o extravagante, o sério e o risível, anseios, projetos, ideias de vida que pulsam, me rasgam, clamam por acontecer, gritando de dor o ritmo do relógio. A barricada incessante do tempo, cronometrado, imbuído nos fazeres sequenciais da rotina. Essa, que mede em horas as rotações que se afunilam e nos anulam. Os meus personagens estão cansados de dormitar na coxia e as minhas ansiedades engavetadas quase faz falar o criado-mudo!

Prá me transbordar de mim. Quase não caber mais...

Do indiferente


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Do que eram seus dias, nada sei, mas as noites frias o traziam de volta ao mesmo lugar. Ele e um outro, que também era ele. Como quem pega uma criança pelo punho e a carrega junto ao criado-mudo pra dormir. Mas não se tratava de uma criança, tampouco a noite se fazia fraterna. Nem com ele, nem com esse outro, que também era ele.

A aparência envelhecia exponencialmente, pele rachada das chibatadas do tempo e do vento de outonos outros e de outros invernos tantos que quase lhe congelaram as entranhas. Aqueles, nos quais embebíamo-nos de chocolate-quente, soterrados em vestes e mantas bordadas em tecidos pesados.

A cada rotação, um dia a menos (ou a mais, se assim lhe soa melhor), a cada fim de noite, um colchão um tantinho mais estreito, um tantinho mais mofado... E sempre, e tanto mais, inerente à paisagem. Feito extensão da calçada e da vida. Mas ainda ali, enraizado à espera do dono.  Dele e daquele um outro, que também era ele. Passa dia, passa noite, enfileiram-se semanas, meses e anos, foi primavera, desembarcou verão, mas no outono último, no último ninguém retornou. Traiçoeira noite, não o recolhera de volta.

O personagem do meu relato, conhecido meu não era. Protagonista da própria existência, coadjuvante incômodo de todas as outras. Percebido por alguém que me contou o que lhe contaram, do caso que conto agora. Um alguém que se crava na paisagem contabilizando os tantos tantos “não alguéns”. Sem rosto, sem nome, sem endereço. Mas com um colchão!

Na semana seguinte à desventura daquele nunca bem aventurado, lá estava o colchão reocupado. Um cachorro que gania, lamentando ausência... daquele que também era ele.

07/05/2015

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Hoje conheci um rosto! O rosto de um vizinho! Mas não era um vizinho qualquer... era um vizinho cujos pés eu já conhecia. E não era só os pés... dele, conhecia também sua cama e seu cobertor. Sim, os pés, a cama e o cobertor! Sem engano, os meus pés também eram conhecidos seus mas, acima dos tornozelos, não sei até onde os olhos daquele sujeito foram capazes de percorrer nos dias sempre corridos. Com o perdão das repetições, o que conto é mesmo isto, crê! Nos encontrávamos os dias todos, subsequentes, mas nada além dos pés um do outro conhecíamos. Hoje, veja bem, hoje descobri o rosto que aqueles pés carregavam! Sim, estavam lá, sem engano: uma boca cerrada, um nariz estampado no meio da cara, um par de sobrancelhas e enormes olhos arregalados. E eu vi essa composição in-tei-ra! Eu, com meu nariz estampado no meio da cara, meu par de sobrancelhas e a curiosidade pregada na retina dos olhos que se arregalaram... Fui descoberta! E fui descoberta por aquela criatura que se aninhava en/coberta. “-Tia, me paga um lanche?”
30/04/2015


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...e cá, me desvestindo de meias vestes. Dos não acontecimentos, do morno e do raso, dos meus desacontecimentos. Êta coração que quer! Êta sangue quente em maratona! Como desvestir se a roupa ainda serve e o novo não apraz?! Libriana, chata! Enxerga-te tu mesma, assim, como nas descrições que te são ofertadas sem encomenda! Enxerga-te quente, viva, lá e cá, bonita, mulher, grande, agarra o mundo sem te apegar a ele, agarra como sempre fez com o desapego que nunca soube ter! Sê assim, tal qual descrições que há pouco te fizeram debruçar em reflexões: crueldade na doçura. Doce? Sim, sê sempre doce! Mas "crueldade" é palavra que não reside em ti! Não acredite, não adote! Como ousam te rotular assim?! Por respeitar tuas próprias vontades sem ceder aos caprichos de outrem?! Lembra-te: tantas vezes traiu a ti mesma... Respeita o teu querer, não te force a outros, não te condene por tuas negações à racionalidade, aceita-te! Olhe pra trás se quiser olhar e continue carregando contigo o que acredita que ainda possa te acompanhar. E sê linda, tão linda quanto te descrevem, tão linda quanto aqueles que não conhecem tuas fraquezas creem que tu seja! 

Descrição


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"Mulher do cabelo liso e nariz estreito em pele preta; do sorriso que brinca e das bochechas que apoiam os olhos amendoados; do par de panturrilhas que se desenham em pernas fortes, sobre os pés que ousam dançar o mundo, sob o abdômen rijo que sustenta seios fartos... Menina lenda 'Powhatan', guerreira de madeixas longas, fugida de clássico infantil; menina, pequena gigante das veias grossas, menina... (...)"


Escreveu-me.

E eu cá bailando na musicalidade bonita que carrega a descrição... Mas, diga-me tu: há nela, poesia ou estereótipo? Lê-me com olhos teus ou cria em mim personagens pros teus fetiches? Sujeito bonito de palavras macias, cujos textos, porém, não encontrarão os meus.


 04/2015

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Tanto espaço nos braços que guardam [e aguardam] o abraço, tantas meias palavras que desenham os meios diálogos, tanta coisa na carne, no travesseiro e na escrita... Quantos transbordares! Quantos! A vã fuga das vontades contidas, a vã busca de outros aconchegos, a vã racionalidade que mascara os apegos. Quantos pesares! Uma saudade que se fantasia mas não morre, a reminiscência do cheiro, das brincadeiras soltas, das cócegas... onde foi que deixamos nossos rastros? Onde foi que nos atropelamos e não voltamos pra juntar as partezinhas que caiam pelo caminho? Quantas permanências guardam o hoje! Tão mal percebida e zelada essa bagagem, que tanto guarda ela? Quantas respostas por acontecer! Comigo, trago tudo, as danças e andanças, as dores de cabeça, as madrugadas, os dias mal terminados, as noites em claro, os lugares desconhecidos... e um querer, que quero!

03/2015




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As pessoas já não são as mesmas, os lugares já não são os mesmos, as vontades e as prioridades também não. O tempo vai somando rugas à bagagem e nós vamos bailando suas intempéries, sendo cooptados pelas algemas de uma vida adulta ensandecida, que se deixa empoeirar ao passo que sabota os próprios anseios e imerge em impessoalismos. Uma capital pulsante, tão cheia de vida e tão carente de vitalidade. Gente meio gente, meio bicho, meio arquivo de metal. Um contraste que dói, que pesa, que clama. As linhas tênues entre o prazer e o padecer. Os textos de meias palavras;  e o pranto contido, tão sem tempo pra acontecer...

03/2015



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A mente cansada das vestes empoeiradas do mundo; exaurida da superficialidade das relações; dos companheirismos com prazos de validade; do esvaziamento do "ser"; a exaustão dos braços que tentam remar contra a maré; o cansaço diante das não adaptações às mequinharias humanas; da luta diária por não imergir na descrença politica; a linha tênue entre a vontade de lutar e a vontade de desistir; o cansaço dos escapismos; o cansaço em insistir manter laços; o cansaço das saudades; o cansaço da cidade; da militância; da falta de tempo e de paciência; o cansaço da TPM; o cansaço de ser mulher; o cansaço de estar cansada.

Karina Morais

03/2015


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Um dos pés caminhava nú. Apenas um dos pés. Olhares de reprovação. Certamente menos estranhamento despertaria se ambos descalços estivessem. Unhas sujas, calcanhares rachados, compondo um pé enorme de cutículas inchadas. O pé que calçado seguia, também nem ele todo no chinelo cabia. Fingiu não reparar nos cochichos daquela gente de patas vestidas. "Proxima estação: Sé. Desembarque pelo lado esquerdo do trem". O menino saltou do vagão. Enquanto não tivesse seu par de pisantes completo, seguramente do chinelo velho de numeração pequena não se livraria. Ainda era possível, acreditava, um dos pés proteger. De sua fisionomia, nada recordo. Um menino sem rosto, marcado pelo estigma do pé descalço.

Karina Morais
28.02.2015

Arquitetura do corpo


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Plantas, dedos, tornozelos, canelas, joelhos, coxas, virilhas, vagina, umbigo, abdômen, mamas, tórax, axilas, garganta, queixo, boca, buço, nariz, bochechas, olhos, sobrancelhas, testa, orelhas, nuca, ombros, braços, cotovelos, antebraços, mãos, dorso, lombar, quadril, nádegas, panturrilhas, calcanhares, plantas.

Dança.
Tudo move.

Ressaca


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Ao acordar, por horas procrastinou levantar da cama, evitando deparar-se consigo mesmo. Não queria recordar de seu protagonismo das noites anteriores. Sentia asco da própria transpiração, que exalava álcool barato, e do gosto amargo que ficara na saliva. Sentia-se feito personagem de Augusto dos Anjos. Teria permanecido o resto do dia ali, feito casulo, embriagada de ressaca moral por, mais uma vez, ter traído a si! Teria permanecido, não fosse a respiração oscilante, ofegante por ar. Não fosse a câimbra nas pernas e as mãos dormentes. Não fosse a claustrofobia que lhe sufocava em pesares. Não fosse o celular caído em qualquer lugar do quarto, notificando incessantemente que os companheiros das noites anteriores ainda existiam. E ainda lhe queriam. E queriam ainda mais. E ligam no dia seguinte! Quis lançar o celular pela janela. Quis dizer ao pobre rapaz que a noite foi um erro e que o cheiro dele que ficara na pele lhe revirava o estômago. Perfume diabético, minuciosamente escolhido pra agradar as presas. As presas. E agradava, mas grudava-lhe na mente feito vinheta política do horário comercial. Perturbardor. O pobre rapaz? Coitadinho... antes desprezível fosse! Desprezível era ela, que o culpara por não ter percebido suas faces de atriz. Ela sabotou a si mesma, forjando reciprocidade.

02/2015

Sobre qualquer coisa


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Ela se deixava levar como água, adaptando-se às circunstâncias conforme o fluxo natural das coisas - ainda que as curvas da correnteza por vezes consigam mudar todo o curso de um rio. Bailava em impulsos, intensidades e inconstâncias, mas até que driblava bem as oscilações de seus [des]ritmos e "porventuras". No fim, o saldo lhe parecia sempre positivo, salva por sua habilidade - meio trôpega, talvez - de se reciclar, se apegar e se desapegar sem muitas crises, segurando com os dentes os limites da racionalidade. Refletir a ciclicidade da vida em relação a todas as coisas significa, antes, autoavaliar-se, pra então compreender as fases que nos encerram e nos recriam. Confortava-lhe crer na não existência de rupturas, visto que tudo (tudo!), ainda que se distancie no tempo, se perpetua na memória afetiva. E tudo o que nos afeta vira memória afetiva. E tudo nos afeta! O cachorro, a pedagoga, a adolescência, a viagem da quinta série, os dialetos da avó, os namorados e os quase namorados. Tá, tantas voltas pra dizer que, mais uma vez, ela se via imersa em um "não-relacionamento", desses, no qual o relacionamento existe, de alguma forma, mas não se sabe bem que "forma" é essa. Algo de indefinido que movia duas pessoas em determinados momentos - alguns escancaradamente forjados - a estarem juntas. Ela não sabia como o outro entendia a situação. Talvez o outro também não soubesse, nem quisesse saber. Ela evitava qualquer tipo de conversa a respeito. Talvez o outro nem pensasse em conversar. Ela já não se contentava com as indefinições e com os "de repentes", que no início lhe eram lugar de conforto. Talvez ao outro só interessasse o conforto das indefinições. Ela não sabia até que ponto almejava mudar essa coisa, sem forma, sem definição, sem entendimento. Tampouco sabia o que esperar. Talvez fosse interessante assim, do jeitinho que acontecia... mas os meses de tantos "talvez", talvez lhe fizeram apaixonar [!] e os diálogos que não aconteceram, talvez fossem mais urgentes agora, a ausência de palavras se tornara indigesta demais e as frases mal construídas, impulsivas por acontecer, já não dormitavam mais tranquilas na garganta. A vida mandava lembrar: o autocontrole é limitado.

Mas ela também não aprendera a verbalizar sobre ela mesma, nem sabia se deveria.

Karina Morais
15/12/2014

compensatórios


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Bastava uma tatuagem. Talvez três. Um copo de cerveja. Ou dois. Muitos copos, talvez. De repente as cartas do tarot, um passe, uma leitura de mapa astral ou uma festa de santo. Talvez bastasse uma viagem longínqua. Ou uma visita aos pais, apenas. O encerramento do semestre letivo. É, talvez isso. Talvez um incenso bastasse, ou uma música. Um chocolate, de repente. Ou cinco. Talvez mudar de quarto. Ou de cidade. Talvez ter outras pessoas na sala. E no quarto. Comprar roupas novas, filmes e quadros. É isso, talvez faltasse plantas. E um cachorro. E um gato. Um orquidário inteiro. De repente era só ter tomado gengibre e mel. Ou mesmo tirar a poeira dos móveis e organizar as inutilidades. Talvez trocar o número de celular. E deixar as redes sociais. De repente respeitar o tempo de sono. E o tempo pra todas as coisas. Não ser libriana, talvez. Bastava um café. Um litro de café. Talvez bastasse mudar a lua ou ser tarde de domingo. Todos os dias.

Karina Morais
02.12.2014

Das rupturas com o tempo


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Vamos lá! Eu precisei escrever, pra consolidar alguns significados que essa imagem representa, dentre os tantos que – seguramente – ela ainda assumirá.

Nossa relação com o “tempo” adquire pesos distintos pra cada indivíduo, pra mim sempre foi conflituoso, ainda que eu saiba trabalhar bem com jogos de adaptações. Cada fase emoldura um conjunto de experiências, que costumeiramente chamamos de “ciclos”. Um ciclo é aquilo que se encerra em si mesmo e, consequentemente, habilita reinícios. Ao longo de nossas vidas o calendário é quase inevitável ao tentarmos elencar as ciclicidades que nos compõem e as fases que nos encerram. Isso é assustador! Somos indivíduos com demandas específicas acondicionados por um calendário comum. Da alfabetização ao ensino superior, da inserção no mercado de trabalho à aposentadoria. Somos, desde o nascimento, desrespeitados pelas convenções sociais de contagem do tempo! Aos 10 meses é preciso saber andar, aos 12, falar. Aos 6 anos, saber ler e escrever, aos 10, ser poliglota. Aos 18 estar na faculdade, aos 26 ter concluído o mestrado, aos 30 ser bem sucedido em todas as instâncias, ter casa, carro, cargo de chefia, um sem número de viagens internacionais, um casamento que pareça perfeito e, claro, um filho. Tudo que assegure um "status social". Enfim, construções que nos tornam performers de nós mesmos. Adotamos uma rotina – mais pela necessidade que pela escolha – na qual vivemos em função do relógio. E assim nos deixamos enraizar...

Nas ânsias e ansiedades, nossos pés correm mais rápido que o fôlego possa aguentar, e quando nos sobra fôlego, são os pés que estão cansados. A vida insiste em se apresentar desritimada e o tempo parece nunca ceder espaço às nossa fomes de mundo. Somos, o tempo todo, pela vida inteira, cobrados aceleradamente pela família, pela faculdade, pelo trabalho, pelo doentio sistema de produção no qual, arbitrariamente, estamos inseridos.  

Nos acomodamos com estes determinantes na vã ilusão de que se trata apenas de “uma questão de tempo” mas, né, o tempo passa e com ele as distâncias entre a disposição e a lassidão se estreitam. Acabamos imbuídos por aceitações que nada mais denotam que uma série de frustrações acometidas pela asfixia de uma vida acelerada e desencorajada. Por um sistema que nos pede pressa. Por um sistema que nos acovarda. Sem percebermos, robotizamo-nos. Vamos perdendo nossa empatia com o outro, nossa sensibilidade comunitária, nossa energia à luta de nossas próprias ideologias. E isso é tão cruel... desumanizamo-nos! 

Sabe, eu quis gravar tudo isso na pele! Sim, que é pra eu jamais esquecer. Pra ser a marca de uma autoavaliação e o selo de um compromisso. Pra que a mecanicidade da rotina me anule menos e engavete menos os meus projetos. Os meus projetos, os meus anseios, as minhas ideias com lugares, com cirandas, com teatro, com dança, com mato e argila, as minhas vontades de abraçar, de conhecer, de me apaixonar, e todas as palavras que me querem transbordar. É pra eu jamais me tornar todo o pessimismo que dá início ao meu texto. Eu quis gravar tudo isso na pele como a aliança que fiz comigo. Eu quero ter a minha identidade respeitada e não abraçar o que socialmente me exigem por convenção. Nego as frustrações das vidas medíocres, mesquinhas, dogmáticas.

Hoje, mais do que nunca, creio fortemente na minha capacidade de decisão e, felizmente, sigo em paz com o caminho que escolho todos os dias. Também creio no meu poder de renúncia, quando julgar necessário. O tempo que aprisiona é também o que liberta. E liberta porque é transformação, metamorfose. Tudo o que nos constrói é passível de ressignificações, o passado se reorganiza na memória e até nas intempéries há poesia. Eu quis uma imagem que abraçasse essa leitura. Uma leitura ainda – e sempre – em construção. Que é pra eu aprender a repousar minhas pressas, recolher a efemeridade da vida que se debruça nos ponteiros do relógio, e tutelá-la sob meu controle.

11/11/2014

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Passado o período onde a efervescência política borbulhava no país, é preciso juntar os restos de fôlego que ficaram espalhados pela casa, na bagunça do quarto, na negligência com a alimentação, nos afazeres acumulados... de volta à percepção da rotina, que não cessa, mas por vezes se anestesia no sangue quente, que pulsa os anseios da militância. Pequenos prazeres como assistir um filme, ler um livro de literatura, correr no parque ou se permitir um domingo ocioso, assumem outra dimensão quando se precisa aprender a lidar com o tempo cronometrado. O fôlego vai se esvaindo a ponto de querer afogar em álcool todas as urgências que transbordam do peito. Todas as vontades particulares, os sonhos ideológicos, as meias ideias, os projetos engavetados, as palavras abafadas na garganta, as não adaptações. Um dia me explicaram a diferença entre solidão e solitude e, admirando a segunda, evitei vivê-la por medo de vê-la se transformando na primeira. Confesso que estar acompanhada comigo mesma, quando na ociosidade, me soa um tanto arriscado, a julgar que a introspecção é propícia às reflexões que vão pra além da racionalidade. Talvez eu tenha aprendido bem a lidar com as emoções que se vive coletivamente - e me apraz senti-las - mas ainda receio que permitir a livre manifestação das emoções individuais possam conduzir ao desequilíbrio. Não faço, com isso, uma defesa da negação do ser, mas um exercício de autoconhecimento. Percepção das construções a que nos emolduramos, enquanto mecanismos espontâneos de "autopreservação".  Com aspas, porque com essa mania de racionalidade, talvez um dia nem o eco responda mais.

Karina Morais
02.11.2014

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Bailando em devaneios; desatando remotos grilhões; oscilando equilíbrio; dissimulando autocontrole; traindo as próprias convicções; atropelando sensatez; algemando-se a uma ideia de liberdade; procrastinando verbalizações. Constância de inconstâncias; inconstância nas constâncias. A palavra que adormece na insegurança

...e nas reticências. 


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Acho que vou comprar água plástica...

Sobre rotina, Mogi e pessoas


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            Cada vez que venho pra Mogi – cidade onde nasci e estive até os 18 – me percebo confortada por uma sensação de alívio que ainda não sei bem explicar, visto que voltar a residir aqui não está nas minhas pretensões. Lembro que, quando morava em Mogi, procurava todos os pretextos pra sair, talvez o alívio de hoje seja simplesmente por saber que, se por ventura (ou desventura) um dia mudar de idéia, ainda será possível retornar.
            Eu me moldei a um estilo de vida intolerante à idéia de rotina, mas estreitamente enraizada nela. Sempre tive o tempo cronometrado e uma avalanche de compromissos e responsabilidades desde muito pequena, contudo, não reclamo, as escolhas sempre foram minhas e, se foi e é assim, é porque eu conduzi minha vida dessa forma. Quando digo “intolerância à rotina” é porque me convenci que eu só suportaria minhas próprias escolhas se houvesse a possibilidade de fugir delas. Daí que acampo desde os 15 anos, quando não posso acampar, corro pro mato mesmo assim. É minha válvula de escape quando o “tempo fecha” e a rotina sufoca. O frustrante é perceber que essas “rotas alternativas” dependeriam cada vez menos das minhas vontades e até elas estariam sujeitas às permissões de calendário e relógio. O que eu não tinha noção é que, com 22, eu me depararia com condicionantes que aos 15 eu não me deparava.
            Voltando ao papo de Mogi, sabe, é estranho a relação que tenho [re]construído com essa cidade. O que sinto quando retorno obviamente não é o mesmo que eu sentia a um ano atrás, menos ainda a quatro. O olhar se ressignifica, sei disso, mas é curioso perceber essas transformações na forma de se ver e entender as coisas. Tenho vindo com cada vez menos frequência, perdi o vínculo com a maior parte das pessoas que conhecia aqui – e isso inclui bons amigos e relações afetivas – ainda tenho reencontros legais, com gente que estimo, ainda frequento algumas festas e bares de vez em quando, mas tenho atendido pouco as mensagens de “vamos combinar algo?”. Longe de ser por não querer, ora preciso escolher entre rever amigos ou estar com a família, ora entre estudar ou descansar. Confesso que a procrastinação também tem sido uma constante, ainda que o coração peça o contrário. Neste último caso, não sei ao certo a que justificativas recorrer – se é que existem – mas tenho encontrado a resposta nos receios. Talvez me desestimule manter elos que já estão esvaziados, não por culpa minha ou deles, mas por conta do tempo. Talvez seja medo, por saber (e aceitar) que a tendência pra essas e todas as pessoas que conhecemos ao longo da vida seja mesmo o afastamento... e as relações se limitem a um “status online” nas redes sociais. Pode soar pessimista, rancoroso ou qualquer coisa do tipo, mas juro que digo com o coração calmo e a mente quase tranquila. Eu realmente já não espero a perpetuação dos vínculos com absolutamente ninguém além de alguns poucos familiares. Algumas pessoas serão sempre lembradas com carinho, é triste, mas o distanciamento é inerente ao sistema em que estamos inseridos – e habituados - e eu não tenho nenhuma sugestão pra reverter isso.
          Talvez a aceitação disso seja um erro. Mas tenho me habituado a trocar as reflexões pelo sono, quando o sono já me é inevitável.
            Diante daqueles que gosto e que compõem os meus círculos sociais no tempo presente, até me esforço pela manutenção das relações, valorizo demais o simples prazer da companhia, porque em todas elas enxergo pessoas ausentes num futuro não tão distante. O que faço, e talvez elas também, seja tentar prolongar esse meio tempo em que podemos desfrutar uns dos outros. Às vezes brinco, dizendo que eu me casaria com todos os meus amigos pra, de repente, ter a “garantia” de que os laços perdurariam pra além dessa ou daquela fase e que, companheiros de velhice, pudéssemos falar e rir de todas elas.  
Karina Morais
07/09/2014


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E eu me vou levando conferindo sentido às coisas
Me compondo e me vestindo de mundo, não raro irreal
Me despindo do que nunca me foi veste
Eu me vou levando embriagada de ausências, músicas, fotografias...

Há um milhão de quilômetros no meu estômago
E uma via de mão dupla na garganta.

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Amo e odeio a cidade, concomitantemente, o tempo todo. Tenho me percebido num estilo de vida que gosto, mas que questiono. Parece incessante a busca pelo preenchimento do tempo. Não sei o que é simplesmente "estar", sem essa coisa frenética de me perder em calendário, relógio e continuar achando que ainda é pouco, que eu poderia e deveria fazer mais. Depois usar tudo isso de pretexto pra me transbordar em alguns outros excessos. A gente se adapta à caoticidade e adota um estilo de vida tão caótico quanto. Na real, também não sei se tô afim de uma outra postura frente a isso. E não sei se é por gostar que seja assim, ou se é por simplesmente não estar disposta a encarar mais uma luta de readequação. Tudo o que faço me é claro de sentido e razões. Tudo! Em contrapartida, nem sempre sei elencar prioridades, não sei dosar o dispêndio de energia pra isso ou pr'aquilo. Essa coisa de "deixar tudo fluir" tem me enjoado, preciso saber pra onde corre o fluxo da maré e o que eu espero da correnteza. Tenho considerável dificuldade em tomar decisões, mas sou verdadeiramente segura comigo mesma e isso me faz crer que devo ter tudo sob controle, em absoluto, que é pra não titubear. Exceto pra um lado místico que ainda procuro conhecer, abstração definitivamente não é meu forte. Prefiro a praticidade e objetividade das coisas. Indefinições me cansam, em todos os aspectos, embora reconheça que por vezes seja eu a procrastinar as definições. Parece confuso, é confuso pra mim também. E assim seguimos bailando nossas próprias contradições, amores e desamores, com a cidade, com os sujeitos que nos compõem, com o tempo.

Karina Morais
26/08/2014


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A  gente se limita pra se poupar, e se poupando se sabota.
Malditas minúcias que se sufocam nos receios e minguam antes de experienciar a lua cheia.

"Eu gosto mesmo é de vida real"


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Não tenho tempo pra mundo imaginário. Durmo tarde mas não sofro de insônia e nunca sofri, os dias são sempre corridos e cheios de gente, não sobra muito espaço pra flertar com abstrações. Parece clichê mas prezo mesmo pelo aqui, pelo agora, por pessoas e acontecimentos reais, pela clareza e praticidade das coisas. Só trabalho com suposições em trabalhos acadêmicos. Minhas saudades são muitas e intensas, mas facilmente controláveis. Digo o mesmo às preocupações. Acho que, de todos os aspectos da vida, me sensibilizo mais com crianças, idosos e cachorros. Não tenho muito dom pra construir novelas mentais e ainda menos pra suprir expectativas pras novelas que o mundo quer que nos encaixemos. O que tiver que acontecer, acontece e ponto. Há madrugadas em que eu até queria conversar mais com os lençóis antes de adormecer, pra conseguir visualizar certos pensamentos bonitos que por vezes me acometem de surpresa. Mas meu travesseiro é um convite ao sono e antes que os quadros se formem eu já me anoiteci.

Karina Morais
07/2014

1ª Pessoa do Singular


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Desde que me reconheci enquanto sujeito social que – como todos os sujeitos sociais – porta capacidade de articulação política, busco pensar em como se projeta cada uma de minhas ações e perceber como são construídas as opiniões, minhas e daqueles que me cercam. Desde que me reconheci enquanto sujeito político-social, minha vida é constante desconstrução e reconstrução e tô o tempo todo me policiando quanto a esses nivelamentos. A diferença é que hoje eu sou segura o suficiente pra conseguir afirmar determinados posicionamentos que em um outro momento eu recearia falar, e a não ignorar aspectos da sociedade que talvez eu ignorasse por escolher ignorar. Eu respiro e vivo em função de uma identidade ideológica seguramente definida que, não obstante, frequentemente se coloca em conflito com tudo o que um dia me ensinaram e me doutrinaram a acreditar (por também se tratar das ideologias que perseguiam).

Repare que eu não tô falando apenas de objetivos. Objetivos eu os tenho (e me conforta tê-los) mas, aqui, digo mesmo é de ideologias! Tem noção do quanto isso é forte, meu caro? São elas que me norteiam e são a elas que eu me agarro quando a fé é pouca. A fé em mim mesma, saca? São elas que não me deixam renunciar tanta coisa que me faria oscilar e são a elas que canalizo toda energia quando a fonte parece secar e a apatia toma conta de tantas outras questões da vida em sociedade. Confesso que, dado o sistema em que estamos inseridos, isso é um bocado angustiante: falta braço e tempo. A gente queria mesmo é abraçar o mundo! Fôlego tem, e perna tem também (ainda que por vezes nos convençamos do contrário)! Sabe, só queria registrar que tenho me sentido bastante empolgada com a atuação política. Não é lá nenhuma novidade, mas eu tô mesmo num momento enérgico pra isso. Tenho me deparado com ideias novas e com pessoas lindas – de coração e de luta – que se somam no caminho.

Muito tem me estimulado levantar a bandeira pelo plebiscito popular a favor de uma reforma do sistema político. Muito me estimula integrar um Coletivo que confio e que ajudo a construir. Muito me estimula estarmos trabalhando – dentro desse mesmo Coletivo – junto às escolas públicas e debater política com uma garotada que talvez jamais se interessasse por isso. Muito me estimula estar na luta feminista e encontrar mulheres maravilhosas dispostas a levar a frente ideias de ações em prol da igualdade de gênero em todas as instâncias. Sabe, minhas fomes político ideológicas crescem vertiginosamente e se mostram insaciáveis. Eu gosto disso. Na real, na real, eu só precisava escrever que eu tô feliz por estar incentivada. Não com as conjunturas atuais, mas por me sentir útil àquilo que persigo, sem precisar de holofotes. Eu preciso contar que eu tô estimulada, que é pra eu lembrar depois, naqueles momentos que a gente tem vontade de jogar tudo pro alto e vestir logo o discurso derrotista. Eu não nego as minhas inconstâncias e eu tenho ciência que o otimismo de hoje pode não ser o de amanhã. Isso me dá medo às vezes, mas política é quebrar a cara também, porque o mundo é torto e a gente precisa aprender a ter jogo de cintura, que é pra não enlouquecer... mais.

Karina Morais
12/08/2014


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Engavetar curtas-metragens, guardar as emergências no estômago.

...E como pega!


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"São Paulo é como um mundo torto", escrevi. "O que isso significa?", perguntaram-me. "Que a caminhada é cheia de desníveis" - respondi - "Em qualquer lugar é, mas aqui o bicho pega".

...E como pega! Pega quando a fuligem do ar lhe faz tossir; pega quando o sorriso de um desconhecido te surpreende, tamanha é a indiferença dos transeuntes; pega todas as vezes que você tem que engolir uma falsa ideia de "democracia", essa, que é toda manchada por um legado ditatorial; pega todas as vezes que você fala ou visita uma ocupação e sai dali escutando rotularem aquela gente como "parasitária"; pega toda vez que um companheiro que questiona o sistema tem seu nome marcado num processo criminal; pega toda vez que pessoas próximas cospem em você todo o discurso midiático pra deslegitimar a penosa luta dos movimentos sociais que você tanto apoia. Pega toda vez que você não consegue dormir por conta do barulho dos carros; pega toda vez que você dorme sonhando com o barulho das buzinas. Pega toda vez que um "fiu-fiu" te faz lembrar o quanto essa sociedade patriarcal é escrota com as mulheres; pega toda vez que você lê a manchete de mais um gay sendo espancado, de mais umx trans* sendo mortx, de mais uma lésbica sendo estuprada por "corretivo social", de mais uma dona de casa sendo violentada pelo marido, de mais um negro levando porrada da polícia. Pega todas as vezes que o tempo no transporte público lhe faz cansar mais que seu trabalho e que seu trabalho lhe lembra todos os dias o quanto o trabalhador é descartável. Pega todas as vezes que os assentos preferenciais não são cedidos àqueles que mais precisam deles; pega todas as vezes que você percebe se robotizando pelos afazeres universitários e todo o resto virando secundário; pega todas as vezes que você se dá conta de estar inserido em um lugar cuja maioria são pessoas aceleradas e passageiras, acostumadas com a pressa e com a superficialidade das coisas. Pega toda vez que você precisa renunciar algo que lhe apraz por pura falta de tempo; pega toda vez que se anuncia um fenômeno celeste observável a olho nu, mas que a poluição não lhe permite visualizar nem mesmo se toda a iluminação urbana estivesse apagada; pega todas as vezes que se naturaliza pessoas em situação de rua, como se elas fossem partes integrantes da paisagem e, portanto, comuns aos nossos olhos; pega toda vez que tenho saudade de casa, pega quando vejo famílias perdendo as suas. Pega todas as vezes que eu tenho vontade de dizer pra todo mundo - ou pra alguém - o quanto tudo isso pega (e como pega, bicho!), mas que acabo "deixando pra lá" porque, além de tudo, eu tenho preguiça e não tenho termômetro pra medir a paciência do ouvinte.

Karina Morais
03/07/2014

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