Archive for maio 2015


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Esse amálgama de tantas personalidades que nos compõem, performaticamente, nos cria, recria e transforma, numa constante, a constante de todos os dias... por vezes somos os estranhos de nós mesmos, desacostumados com nossa própria pluralidade, inúmeras são as faces, fases e facetas que bailam em nós. Desacostumados estamos com nossa própria existência! Tenho uma fome de mundo que bole em mim, que me consome, que me come por dentro... O visível e o recôndito, o sutil e o extravagante, o sério e o risível, anseios, projetos, ideias de vida que pulsam, me rasgam, clamam por acontecer, gritando de dor o ritmo do relógio. A barricada incessante do tempo, cronometrado, imbuído nos fazeres sequenciais da rotina. Essa, que mede em horas as rotações que se afunilam e nos anulam. Os meus personagens estão cansados de dormitar na coxia e as minhas ansiedades engavetadas quase faz falar o criado-mudo!

Prá me transbordar de mim. Quase não caber mais...

Do indiferente


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Do que eram seus dias, nada sei, mas as noites frias o traziam de volta ao mesmo lugar. Ele e um outro, que também era ele. Como quem pega uma criança pelo punho e a carrega junto ao criado-mudo pra dormir. Mas não se tratava de uma criança, tampouco a noite se fazia fraterna. Nem com ele, nem com esse outro, que também era ele.

A aparência envelhecia exponencialmente, pele rachada das chibatadas do tempo e do vento de outonos outros e de outros invernos tantos que quase lhe congelaram as entranhas. Aqueles, nos quais embebíamo-nos de chocolate-quente, soterrados em vestes e mantas bordadas em tecidos pesados.

A cada rotação, um dia a menos (ou a mais, se assim lhe soa melhor), a cada fim de noite, um colchão um tantinho mais estreito, um tantinho mais mofado... E sempre, e tanto mais, inerente à paisagem. Feito extensão da calçada e da vida. Mas ainda ali, enraizado à espera do dono.  Dele e daquele um outro, que também era ele. Passa dia, passa noite, enfileiram-se semanas, meses e anos, foi primavera, desembarcou verão, mas no outono último, no último ninguém retornou. Traiçoeira noite, não o recolhera de volta.

O personagem do meu relato, conhecido meu não era. Protagonista da própria existência, coadjuvante incômodo de todas as outras. Percebido por alguém que me contou o que lhe contaram, do caso que conto agora. Um alguém que se crava na paisagem contabilizando os tantos tantos “não alguéns”. Sem rosto, sem nome, sem endereço. Mas com um colchão!

Na semana seguinte à desventura daquele nunca bem aventurado, lá estava o colchão reocupado. Um cachorro que gania, lamentando ausência... daquele que também era ele.

07/05/2015

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