Do indiferente


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Do que eram seus dias, nada sei, mas as noites frias o traziam de volta ao mesmo lugar. Ele e um outro, que também era ele. Como quem pega uma criança pelo punho e a carrega junto ao criado-mudo pra dormir. Mas não se tratava de uma criança, tampouco a noite se fazia fraterna. Nem com ele, nem com esse outro, que também era ele.

A aparência envelhecia exponencialmente, pele rachada das chibatadas do tempo e do vento de outonos outros e de outros invernos tantos que quase lhe congelaram as entranhas. Aqueles, nos quais embebíamo-nos de chocolate-quente, soterrados em vestes e mantas bordadas em tecidos pesados.

A cada rotação, um dia a menos (ou a mais, se assim lhe soa melhor), a cada fim de noite, um colchão um tantinho mais estreito, um tantinho mais mofado... E sempre, e tanto mais, inerente à paisagem. Feito extensão da calçada e da vida. Mas ainda ali, enraizado à espera do dono.  Dele e daquele um outro, que também era ele. Passa dia, passa noite, enfileiram-se semanas, meses e anos, foi primavera, desembarcou verão, mas no outono último, no último ninguém retornou. Traiçoeira noite, não o recolhera de volta.

O personagem do meu relato, conhecido meu não era. Protagonista da própria existência, coadjuvante incômodo de todas as outras. Percebido por alguém que me contou o que lhe contaram, do caso que conto agora. Um alguém que se crava na paisagem contabilizando os tantos tantos “não alguéns”. Sem rosto, sem nome, sem endereço. Mas com um colchão!

Na semana seguinte à desventura daquele nunca bem aventurado, lá estava o colchão reocupado. Um cachorro que gania, lamentando ausência... daquele que também era ele.

07/05/2015

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