Archive for fevereiro 2015


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Um dos pés caminhava nú. Apenas um dos pés. Olhares de reprovação. Certamente menos estranhamento despertaria se ambos descalços estivessem. Unhas sujas, calcanhares rachados, compondo um pé enorme de cutículas inchadas. O pé que calçado seguia, também nem ele todo no chinelo cabia. Fingiu não reparar nos cochichos daquela gente de patas vestidas. "Proxima estação: Sé. Desembarque pelo lado esquerdo do trem". O menino saltou do vagão. Enquanto não tivesse seu par de pisantes completo, seguramente do chinelo velho de numeração pequena não se livraria. Ainda era possível, acreditava, um dos pés proteger. De sua fisionomia, nada recordo. Um menino sem rosto, marcado pelo estigma do pé descalço.

Karina Morais
28.02.2015

Arquitetura do corpo


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Plantas, dedos, tornozelos, canelas, joelhos, coxas, virilhas, vagina, umbigo, abdômen, mamas, tórax, axilas, garganta, queixo, boca, buço, nariz, bochechas, olhos, sobrancelhas, testa, orelhas, nuca, ombros, braços, cotovelos, antebraços, mãos, dorso, lombar, quadril, nádegas, panturrilhas, calcanhares, plantas.

Dança.
Tudo move.

Ressaca


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Ao acordar, por horas procrastinou levantar da cama, evitando deparar-se consigo mesmo. Não queria recordar de seu protagonismo das noites anteriores. Sentia asco da própria transpiração, que exalava álcool barato, e do gosto amargo que ficara na saliva. Sentia-se feito personagem de Augusto dos Anjos. Teria permanecido o resto do dia ali, feito casulo, embriagada de ressaca moral por, mais uma vez, ter traído a si! Teria permanecido, não fosse a respiração oscilante, ofegante por ar. Não fosse a câimbra nas pernas e as mãos dormentes. Não fosse a claustrofobia que lhe sufocava em pesares. Não fosse o celular caído em qualquer lugar do quarto, notificando incessantemente que os companheiros das noites anteriores ainda existiam. E ainda lhe queriam. E queriam ainda mais. E ligam no dia seguinte! Quis lançar o celular pela janela. Quis dizer ao pobre rapaz que a noite foi um erro e que o cheiro dele que ficara na pele lhe revirava o estômago. Perfume diabético, minuciosamente escolhido pra agradar as presas. As presas. E agradava, mas grudava-lhe na mente feito vinheta política do horário comercial. Perturbardor. O pobre rapaz? Coitadinho... antes desprezível fosse! Desprezível era ela, que o culpara por não ter percebido suas faces de atriz. Ela sabotou a si mesma, forjando reciprocidade.

02/2015

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