"São
Paulo é como um mundo torto", escrevi. "O que isso
significa?", perguntaram-me. "Que a caminhada é cheia de
desníveis" - respondi - "Em qualquer lugar é, mas aqui o
bicho pega".
...E
como pega! Pega quando a fuligem do ar lhe faz tossir; pega quando o
sorriso de um desconhecido te surpreende, tamanha é a indiferença
dos transeuntes; pega todas as vezes que você tem que engolir uma
falsa ideia de "democracia", essa, que é toda manchada por
um legado ditatorial; pega todas as vezes que você fala ou visita
uma ocupação e sai dali escutando rotularem aquela gente como
"parasitária"; pega toda vez que um companheiro que
questiona o sistema tem seu nome marcado num processo criminal; pega
toda vez que pessoas próximas cospem em você todo o discurso
midiático pra deslegitimar a penosa luta dos movimentos sociais que
você tanto apoia. Pega toda vez que você não consegue dormir por
conta do barulho dos carros; pega toda vez que você dorme sonhando
com o barulho das buzinas. Pega toda vez que um "fiu-fiu"
te faz lembrar o quanto essa sociedade patriarcal é escrota com as
mulheres; pega toda vez que você lê a manchete de mais um gay sendo
espancado, de mais umx trans* sendo mortx, de mais uma lésbica sendo
estuprada por "corretivo social", de mais uma dona de casa
sendo violentada pelo marido, de mais um negro levando porrada da
polícia. Pega todas as vezes que o tempo no transporte público lhe
faz cansar mais que seu trabalho e que seu trabalho lhe lembra todos
os dias o quanto o trabalhador é descartável. Pega todas as vezes
que os assentos preferenciais não são cedidos àqueles que mais
precisam deles; pega todas as vezes que você percebe se robotizando
pelos afazeres universitários e todo o resto virando secundário;
pega todas as vezes que você se dá conta de estar inserido em um
lugar cuja maioria são pessoas aceleradas e passageiras, acostumadas
com a pressa e com a superficialidade das coisas. Pega toda vez que
você precisa renunciar algo que lhe apraz por pura falta de tempo;
pega toda vez que se anuncia um fenômeno celeste observável a olho
nu, mas que a poluição não lhe permite visualizar nem mesmo se
toda a iluminação urbana estivesse apagada; pega todas as vezes que
se naturaliza pessoas em situação de rua, como se elas fossem
partes integrantes da paisagem e, portanto, comuns aos nossos olhos;
pega toda vez que tenho saudade de casa, pega quando vejo famílias
perdendo as suas. Pega todas as vezes que eu tenho vontade de dizer
pra todo mundo - ou pra alguém - o quanto tudo isso pega (e como
pega, bicho!), mas que acabo "deixando pra lá" porque,
além de tudo, eu tenho preguiça e não tenho termômetro pra medir
a paciência do ouvinte.
Karina Morais
03/07/2014